quarta-feira, 5 de agosto de 2009

DESTINO?


Dia dois de dezembro.
Depois de décadas de dedicação, Deocleto despedia dona Dalva: descuidada derrubara desinfetante dentro do dormitório, degenerando diversos documentos. Desesperada, desculpava-se desejando demovê-lo da decisão. Determinado, Deocleto disse-lhe:
- Depois desse descuido desmedido, danificando-me dois dossiês, dificulta-me desfazer dessa decisão... Destarte, desapareça definitivamente desse domicílio..
Descrevendo dúzias de dívidas, duvidosamente dona Dalva desmaiou. Desconfiado, Deocleto deixou-a desfalecida. Dentro da drogaria “Droga D” divisou Dráuzio devolvendo dez drágeas , deterioradas, desvanecedoras de dentalgia. Debochou:
- Dor de dentadura, Dráuzio?
Desconcertado, Dráuzio disparou:
- Deixe de denegrir-me, deputado... Deveria dizer-lhe dezenas de desaforos... deveria...
- Desculpe-me .
- Desforrarei!
- Desculpe-me, Dráuzio. Deveria dirimir-me desses desplantes depois de deperecer diante duma dor dilacerante.
- Dor dilacerante?
- Deixe-me desabafar. Desejo demais dona Dalva... Deveria dizer-lhe desse desenfreado desejo de desposá-la... Deveria... Desencorajo-me... Doeria demais decepcionar-me.
- Deixe de delirar.
- Deito, durmo, desperto desejando-a demais...Despedi-a: devo descansar desse desespero.
- Dona Dalva deixou-lhe desmiolado, desassisado... Depois dialogamos.
Decorridos dezessete dias, Deocleto divisou dona Dalva dentro da doçaria deglutindo docinhos de damasco. Decidiu desculpar-se.
- ...Dona Dalva – disse desconcertado.
- Doutor Deocleto!... deveria distanciar-se dos doces... diabete descontrolada destrói.
- Detesto doces.
- ...
- ...Dona Dalva... deixe-me dizer-lhe do desejo defeso...
- Deocleto!!! Disse Dráuzio dissuadindo-o.
- Dráuzio!?
- Deixou-me dois docinhos, Dalvinha?
- Dalvinha!?
- Desposamo-nos, Deocleto... Desposamo-nos.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O PÓ BRANCO


Após mais um dia de trabalho, Ataulfo dirigiu-se com alguns amigos para uma choperia, pretendendo abster-se dos problemas do escritório e do mundo. Entretanto, como nos diálogos predominavam os atentados terroristas, decidiu retornar para o aconchego do lar.
Instalou-se no automóvel e pouco mais de um quarto de hora, estacionava em frente ao número 36, da Alameda dos Querubins.
Superou o portão e, depois de alguns passos, penetrou a chave na fechadura e adentrou.
- Nicinha!!! Ô Nicinha!!!
Desatou a gravata, jogando-a na poltrona.
- Nicinha, cheguei!!!
Lançou o paletó sobre a cama. Retirou quase toda a roupa. Ficou apenas de cueca.
- Nicinha!!! Cadê você, Nicinha!!!
"Ô mulherzinha pra bater perna. Nunca está quando eu preciso" pensava, caminhando para a cozinha.
Abriu a geladeira e retirou uma cerveja. Preparou uma porção de presunto e sentou-se à mesa, onde estava depositado o jornal do dia, que estampava cenas da guerra contra o terrorismo de Osama Bin Laden.
"A resistência do líder Talibã, e a intransigência norte americana, estão dizimando inocentes".
Por mais que Ataulfo quisesse ficar alheio aos acontecimentos, não podia. Com o jornal nas mãos, procurou ler todos os artigos que tratavam daquele episódio. Deteve-se diante de um artigo:

"Antraz - a resposta Talibã"
Dezenas de pessoas já foram contaminadas
por um pó branco que, geralmente, chega
ao destino por via postal. O simples contato
tem provocado o Antraz, doença que pode
causar a morte.

Ataulfo, com repugnância, lançou o jornal ao chão, sorveu o restante da cerveja e levantou-se para pegar outra. Nesse momento, ao olhar novamente para a mesa, avista um envelope.
- De quem será essa carta? Resmungou. Será de outro credor?
Volveu-se para pegá-la. Quando a abriu, estremeceu: não havia nenhuma correspondência dentro do envelope; mas, sim, um PÓ BRANCO! Começou a tremer e, a sua reação fez com que o conteúdo do envelope caísse sobre sua mão.
- VOU MORRER!!! Gritou desesperado. VOU MORRER!!!
Ataulfo ruiu ao chão. Começou a tossir e a sentir uma forte dor no peito.
- SÃO OS SINTOMAS!!! VOU MORRER!!! Gritava tanto, que toda a vizinhança poderia ouvi-lo. Talvez fosse esse o seu desejo: que alguém viesse para socorrê-lo.
Cada minuto parecia ser um século. Respirava com dificuldade. Começava a sentir o hálito da morte.
- VOU MORRER!!! NICINHAAAAAAAA!!!
Nicinha entra alvoroçada e desfaz-se rapidamente de alguns embrulhos. Socorre o marido.
- O que foi, Ataulfo??? O que você está sentindo, pelo amor de Deus???
- Vou morrer, benhê... Fui contaminado pelo antraz... Malditos terroristas!!!
Nicinha também começa a gritar em prantos.
- Eu não quero ficar viúva!!!
- Você vai encontrar alguém melhor que eu...
- Não quero ninguém!!! Eu só quero você, meu amor!!!
- Cuide bem dos nossos filhos...
- ...
- Nicinha... balbuciou - Preciso fazer uma confissão pra você... antes que seja tarde demais...
- Agora não é hora... deixa pra depois...
- Mas, eu vou morrer!!!...
- ...
- Nicinha... Esforçou-se, olhou dentro dos olhos da esposa e revelou: eu traí você... e várias vezes... com a Julinha... com a Nanda... com a Raimunda... como se chama aquela mesmo que trabalha na loja do Orlando?
Se ele não estivesse nos braços da morte, ela, certamente, o expulsaria de casa depois de decepar-lhe o falo. Aquele infortúnio exigia que ela o absolvesse.
- Qual o homem que nunca traiu sua mulher? Isso é apenas um detalhe, insignificante nesse momento.
Ataulfo ameaçava fechar os olhos, como se ouvisse o chamado da morte.
- Onde você se contaminou, meu amor?
Com dificuldade, ele apontou para a mesa. Nicinha olhou e não viu nada.
- Não tem nada na mesa, querido... Apenas essa garrafa vazia de cerveja... esse resto de porção de presunto... Huuuuum! Que delícia!!!
- CUIDADO!!! Alertou ao ver a mulher com o envelope na mão.
- Cuidado??? Mas, isso é apenas um envelope... Foi a Dona Nenê que me deu... Estou preparando um bolo para o nosso aniversário de casamento... Acabou o fermento e ela me cedeu um pouco nesse envelopinho... - Revelou acomodando a cabeça do marido entre suas pernas.
Ataulfo, envergonhado, sorriu. Desconcertado, levantou-se e disse:
- Pensei que fosse o tal antraz... Ainda bem que não corro risco de morte... Graças a Deus estou vivo... e bem vivo!
A mulher, pasmada, dirigiu-se à área de serviço e retornou com uma vassoura na mão.
- Seu cachorro!!! Se não morreu pelo antraz, vai morrer de tanta vassourada... Mulherengo! Traidor! Vagabundo!
- Ai! Ui! Para com isso, benhê... Ai! Ui!

domingo, 2 de agosto de 2009

MISSA DE DOMINGO



O domingo finalmente chegara para desfazer a curiosidade daquela cidadezinha de três mil habitantes, escondida no interior paulista. Naquele dia, a única igreja da cidade foi incapaz de acomodar a população, que queria conhecer o novo pároco.
Dona Maria, da quitanda, mandara confeccionar um vestido amarelo com flores vermelhas, especialmente para a ocasião. Atanagildo recuperara o terno sexagenário que usara em seu casamento com a finada Landinha. Dona Estelinha, obesa e falastrona, proprietária de uma doçaria, enfiada num modelito que encomendara da capital, preocupava-se com o cumprimento do vestido, que ameaçava-lhe expor as coxas. Vez ou outra agarrava a extremidade do traje, puxando-o para baixo. Tavinho procurava esconder-se atrás do folheto litúrgico, para não presenciar a cena. Porém, incontrolável, arriscava uma olhadela e caía na gargalhada.
Os fiéis começaram a consultar o relógio, desconfiados sobre a vinda do novo padre. A missa seria realizada às 9:00hs; e os relógios precisavam 9:15hs.
Nesse momento, um automóvel coberto pela poeira da estrada, estaciona em frente à igreja. Nele o padre e um maltrapilho que, descendo, revelou que a causa do atraso fora um pneu furado e um estepe quase vazio.
- Obrigado, padre - agradeceu o indigente entrando na igreja.
O padre sorriu, ajeitou a batina surrada, retirou uma Bíblia do veículo e ascendeu aos degraus logo atrás do seu companheiro de viagem.
O povo, resistente pela curiosidade, acompanhou, com os olhos, a caminhada do padre até o altar.
- Ele é bem novinho, né, Estelinha!?
- E bonitão também, Maria.
- Ai, ai, ai... olha o sacrilégio!
O maltrapilho, pés no chão, barba branca desleixada, abordava cada fiel, estendendo a mão e oferecendo um sorriso. "Não tenho trocado" dizia uns, enquanto outros simplesmente o ignoravam. Chegou a ouvir alguém sugerir que o retirassem dali, pois a igreja era um lugar sagrado, não uma casa de vagabundos. Determinado, continuou a peregrinação. Alguns até deram-lhe umas moedas.
No altar, o padre sem dizer nenhuma palavra, organizava a mesa, abrindo a Bíblia no Evangelho de São Mateus. "Que padre chato!" resmungou alguém. "Nem bom dia ele disse!" reclamou outro. "Vai ver que ele pensa que tem o rei na barriga!" ranzinzou um sexagenário.
O maltrapilho aproximou-se do altar, retirou o microfone do pedestal. Algumas pessoas foram para retirá-lo e expulsá-lo da igreja. Entretanto, com um pequeno gesto da mão, o padre as impediu.
- Irmãos e irmãs... Não subjulguem ninguém pela aparência... Quem vê a mim, sente repugnância em razão da minha indumentária, da minha aparência... Ofereci à muitos a minha mão... não para esmolar, mas para uma saudação. A grande maioria torceu o nariz. Uns pensaram até em me retirar daqui. Outros, deram-me algumas moedas... Não preciso de dinheiro!
O povo estava aparvalhado. Quem seria aquele maltrapilho que se atrevia a ocupar o microfone do padre para repreendê-lo?
- Não fiquem com essa cara... Acho que já está na hora de me apresentar: sou o padre Francisquinho. A partir de hoje serei o pároco dessa igreja.
Enquanto as pessoas cochichavam, o padre prosseguia:
- Esse que está trajado de padre, é o meu sacristão. Nasceu com um pequeno defeito: jamais pronunciou uma palavra. Por isso todos o chamam de Mudinho.
- Não queremos nenhum padre que nos faça de idiotas!
Padre Francisquinho interrompeu o seu colóquio para procurar por quem havia proferido aquela frase. Se o rechonchudo Adamastor não procurasse, desesperadamente, se esconder atrás de dona Estelinha, talvez o padre não saberia, até hoje, que fora ele o autor da exclamação.
Placidamente o padre caminhou até o último banco.
- O senhor se considera um idiota?
Adamastor olhou de soslaio. Dissimulado, corrigiu os olhos para o folheto litúrgico.
O padre permanecia aguardando a resposta. Dona Estelinha, empurrando-o com o cotovelo, cochichou "O padre tá falando com você". Adamastor que suava até pelas orelhas não teve alternativa. Reuniu coragem e justificou-se:
- Um padre não deve mentir... e o senhor mentiu sobre a sua identidade fazendo-nos parecer idiotas.
Sereno, o sacerdote fitou por alguns segundos a cruz no altar e depois falou:
- Chama-me de hipócrita... O que fiz foi para avaliar a cristandade de vocês; assim como se avalia um aluno para definir a diretriz a ser empregada em seu ensinamento... Isso não é hipocrisia... Hipocrisia é estar aqui, na casa do Pai, e repudiar a saudação de um maltrapilho... A veste não é sinal de superioridade. Todos nós nascemos nus! Portanto, iguais. Ninguém é melhor do que ninguém em razão da roupa. Muito pelo contrário. Existem muitas pessoas que se vestem de ouro e, por dentro, estão como o sepulcro: podres.
Adamastor ruiu no banco, enquanto o padre retornou para o altar e celebrou a missa.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

ATALHO
Cada atalho que conheço
do seu corpo sedutor
sempre renova o endereço
para os caminhos do amor.
Trova premiada no XI Jogos Florais de Amparo

quarta-feira, 29 de julho de 2009

MATIZES


O mundo,
no fundo, no fundo,
é muito bom...
depende do tom com que você o pinta,
depende da durabilidade da tinta.

Se a vida,
é lida ranzinza,
é vedado crer
que a melancolia dos tons de cinza
seja impossível remover.

Viver
é ser um pintor perseverante;
é descompor
o mundo beligerante
com as matizes da essência do amor.

O mundo,
no fundo, no fundo,
é muito bom...
depende do tom com que você o pinta,
depende da durabilidade da tinta.
Premiado no VI Concurso Poetas do Vale
Publicado na Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos - vol.41

terça-feira, 28 de julho de 2009

AS APARÊNCIAS ENGANAM


Depois de colocar as mercadorias no porta-malas, Luiza recolheu alguns centavos da bolsa para gratificar ao menino do supermercado que a auxiliara. Tinha ojeriza a supermercado. Entretanto, submetera ao sacrifício para organizar o jantar que o marido ofereceria para empresários europeus.
Instalando-se no automóvel mirou-se no retrovisor alinhando os cabelos com as mãos. Retocou o batom e girando a chave manobrou o veículo rumando para o colégio onde sua filha estudava.
“Deverei usar um Dior ou um Coco Chanel?”- pensava enquanto superava avenidas. Absorta, quase ignorou a filha que a esperava comendo um sanduíche.
- ‘Tá distraidaça dona Luiza!?
- Já falei que não quero você usando esse vocabulário, Diana.
- Dá um tempo, mãe!
- ...E você sabe que eu odeio quando você come dentro do carro.
Afrontando a mãe, Diana lambeu vagarosamente os dedos, sentou-se no banco traseiro e pilheriou:
- Tá a fim, mãe? Tá uma delícia...
Luiza calou-se: eram inúteis as reprimendas à filha de quinze anos. Diversas vezes cerrara os olhos investigando o passado em busca de algum erro que cometera na educação da filha.
- É hoje o jantar com os bacanas?
- É.
- Tô pulando fora... Não tenho saco pra aturar essas babaquices.
A decisão da filha deixava-a aliviada. Era prudente que esta se ausentasse, caso contrário poderia comprometer o sucesso daquele compromisso.
- Olha o sinal, mãe! Tá cega?
A advertência da filha fê-la imprimir o pé no freio e evitar um acidente.
Sem que percebessem, um menino de rua, de cor negra, esfarrapado, descalço, foi se aproximando do automóvel. Quando o viram, assustaram-se. Luiza pressupôs um assalto. Pensou omitir o rolex, as pulseiras e os colares de ouro. Mas, receou uma investida letal. A filha, pétrea, segurava o sanduíche.
- O que... que... você... quer? Indagou Luiza temerosa. Por favor... não nos faça... mal...
O menino, macérrimo, permaneceu olhando-as, sem dizer uma palavra. Quando o semáforo liberou o tráfego, ele, num arrebatamento, subtraiu o sanduíche das mãos de Diana e fugiu.
O menino estava com fome.
Publicado no Nheengatu-Mirim (Jornal da Academia Pindamonhangabense de Letras)

segunda-feira, 27 de julho de 2009

PAZ

A paz que tanto procuras
e dizes não encontrar
é escrava das amarguras
que tu costumas criar.

1º lugar no concurso de trovas Casa do Poeta e do Escritor de Ribeirão Preto/ 2005
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MEDALHA

As medalhas com que cobre
o seu peito de vaidade
mostram que falta a mais nobre:
- a medalha da humildade.

1º Lugar no concurso Confraternização de Trovadores Paulistas/ 2009
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TEMPO

Contra o tempo, autor de rugas
e de indesejáveis cãs,
as estratégias de fugas
por mais que iludam... são vãs.

8º lugar no XX Concurso Nacional de Trovas de Natal/RN – 2007

sábado, 25 de julho de 2009

O EDIL


Jamil engoliu um calmante, banhou-se e acomodou-se na poltrona da sala procurando distrair-se com o jornal televisivo. Ansioso, consultava o relógio de minuto em minuto. Muitas vezes levantou-se para verificar se o seu terno italiano - comprado no Paraguai com todas as suas economias - estava impecável.
- Tininha, ô Tininha! Tô achando esse terno um pouco amarrotado... Dá pra você dar um jeitinho?
A mulher contava até dez para não estourar de cólera. Estava esgotada de tanto se dedicar àquele pedaço de pano. Entretanto, resistia; pois sabia que aquele seria o momento mais importante da vida do marido.
O relógio enfim atingiu às sete horas. Jamil saltou da poltrona e vestiu o terno. A esposa desmoronou esvaecida e feliz.
- Não quer mesmo vir comigo, querida? - convidava fiscalizando-se no espelho.
- Outra vez eu vou... outra vez...
- Será que estou bem assim?
- Está maravilhoso... Ma-ra-vi-lho-so.
Jamil deu-lhe um breve beijo, rejeitando o abraço - poderia amarrotar-lhe o indumento. Instalou-se no fusquinha 80 e rumou para a câmara municipal. "Falta pouco para trocar esse caco velho." Pensava.
Estacionou o veículo a duas quadras. Envergonhava-se de sua condição financeira. Não tivera muitas oportunidades na vida. Talvez por ter cursado apenas até a segunda série do ensino básico. Só não era ignorante porque sabia escrever muito mal o seu nome. Quando pediam para fazer as leituras na igreja, desculpava-se dizendo que sem os óculos - que deixava propositadamente em casa - não conseguia enxergar aquelas letrinhas. Sabia ler sim; mas, custava a reunir sílabas. E, apesar de quase ignaro, conseguira se eleger por ser prestativo e querido por toda a comunidade.
- Seja bem vindo para a posse, nobre edil?
Ajustando a gravata, olhou com indiferença para o grupo onde um homem adiposo, com pouco mais de metro e meio trajava um terno verde, camisa amarela e gravata azul. Era o Zidorinho Bandeira, candidato oposicionista, reeleito com o maior número de votos, entre outros reeleitos.
- Se me permite corrigi-lo, nobre colega, meu nome não é Edil.
Puxando os óculos para a extremidade do nariz, ranzinzou:
- Meu nome é Jamil.
E sobre as gargalhadas da plêiade veterana, ascendeu às escadarias que davam acesso à câmara municipal.
Cada degrau superado agravava-lhe os tremores pelo corpo e a sudorese na fronte abstêmia de cabelos. Nem mesmo o calmante que ingerira antes de sair de casa, conseguia arrefecer-lhe os nervos.
No recinto as pessoas se comprimiam para assistirem a primeira sessão. Naquela cidade era tradição que os representantes de bairros comparecessem a todas as sessões para exigir que as promessas de palanque fossem cumpridas.
Aos poucos a edilidade acomodou-se nas poltronas italianas. Zidorinho Bandeira, assumindo a presidência, assomou o microfone e ordenou:
- Todos em pé para iniciarmos a nossa primeira sessão cantando o Hino Nacional.
Após o ato cívico e as formalidades da ocasião, o presidente determinou:
- Sejam todos bem vindos à nossa casa. A partir de agora, cada um dos nobres colegas deve colocar em pauta as reivindicações da população.
Jamil havia reunido na memória diversos pedidos. Aguardaria a sua vez para explaná-los.
O primeiro a manifestar-se foi Dito Bola, empresário renomado na cidade, proprietário de vários imóveis.
- Agradeço a confiança do povo em me reeleger. Darei continuidade ao meu trabalho. E gostaria de iniciar protestando contra o poder executivo que pretende elevar em 20% o IPTU. O povo não suporta mais aumento de imposto.
"Sobre o IPTU não posso mais falar" pensava Jamil, eliminando um item da relação em sua memória, enquanto a platéia aplaudia eufórica.
Outro vereador levantou-se e comentou:
- Solicito esclarecimentos sobre a pintura do mercado municipal. Inauguraram-no apenas com a pintura de duas paredes. Quando irão completar o trabalho?
Receando ficar sem argumento, Jamil levantava o braço com o indicador em destaque requerendo a palavra. Zidorinho Bandeira fazia vistas grossas até impacientar-se:
- Aguarde a sua vez, nobre edil. Agora o direito à palavra é de Jair Combosa.
- Temos que lutar contra o monopólio dessa empresa de ônibus que presta serviços em nossa cidade. Quero dizer: serviço não. Um desserviço, isso sim. Precisamos garantir a qualidade e pontualidade nas linhas - esbravejou o líder dos transportes alternativos.
Cada edil que se deslocava até a tribuna, antecipava as colocações de Jamil que começava a desesperar-se. Quando Tonho Mão-de-Gato concluiu sua elocução, Jamil se desesperou. Finalmente havia chegado a sua vez. Mas, o que iria dizer? Sentiu tontura quando Zidorinho Bandeira olhou para ele.
- Chegou a sua vez, nobre edil... A tribuna é toda sua.
Desconcertado afastou a poltrona para se levantar. Quase caiu. Ajustou a gravata que parecia querer asfixiá-lo. Enfiou as mãos no bolso procurando o lenço. Enxugou o suor da fronte e limpou as lentes dos óculos. Caminhou tremulamente para a tribuna. Ajustou o microfone. Pigarreou limpando a garganta. Direcionou os olhos para os espectadores. Sentiu um calafrio na barriga que antecedeu a fortes dores. Poderia ser uma reação adversa do calmante. Entre trejeitos de dor, exprimia um sorriso de segurança, pois havia encontrado refúgio naquelas cólicas. Quase de cócoras, agarrou o microfone e gritou:
- Por favor... alguém pode me dizer onde fica o banheiro?
Ao ver o dedo indicador de um funcionário da câmara que dizia: "É por ali", saiu correndo para iniciar suas atividades edílicas.


Premiado no CONCURSO 7º PRÊMIO MISSÕES

sexta-feira, 24 de julho de 2009

PADECIMENTO MATERNO


A mãe, ao vê-lo, não contendo o pranto,
refuta as regras que o destino emprega;
beija-lhe a fronte, a face, as mãos e agrega
reminiscências contra o desencanto.

Mas, outra lágrima a desassossega...
Abraça o filho com ternura e, enquanto
entre murmúrios diz que o ama tanto,
bimbalha o sino decretando a entrega.

Inconformada, aos céus, faz um clamor:
“Meu Deus! Meu Deus! Privai-me desta dor...
Sem o meu filho a vida pouco importa!”

Naquele instante, cessa-lhe a amargura:
seu corpo tomba sobre a sepultura
e junto ao filho ela repousa... morta.


Soneto premiado no XXXI Jogos Florais de Pouso Alegre

quinta-feira, 23 de julho de 2009

CASA DE ROÇA


Bate pilão
da reminiscência...

Ontem
na casa de pau-a-pique
pelas rendas das paredes
de argila
o sol mandava os seus raios
dizimarem pesadelos.

A brisa
vinha compor melodias
e arrefecer o calor.

Os orifícios
da casa de pau-a-pique
tinham remendos de estrelas
que a noite cerzia
enquanto mamãe cantava
canções de ninar.

Hoje
(prosperidade?)
debruço-me na janela
do arranha-céu
espiando a noturnidade
poluída...
Não consigo dormir.

Onde está o meu lençol de estrelas?


(Poema premiado no IV Concurso Literário “Cidade de Maringá”)

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O PAPAGAIO

Os passos pressurosos eram para abreviar o tempo de retorno ao lar. A expectativa em revelar a sua nova aquisição, não desfazia aquele sorriso no rosto. Os transeuntes, curiosos, olhavam-no segurando uma enorme embalagem, cuja proteção plástica, impedia desvendar o seu conteúdo.

Abriu o portão, gritando:

- Benhê! Jonzinho! Nininha!

Os filhos, que brincavam no balanço, correram ao encontro do pai.

- O pai chegou, mãe!

A esposa abriu a porta enxugando as mãos no avental.

- Que gritaria é essa???

- Tenho uma surpresa para vocês. Tenho certeza que irão gostar.

A esposa e os filhos, seguiram-no até o quintal. Ele ordenou-lhes que se sentassem. Depositou o pacote no chão e, segurando a embalagem, puxou-a ligeiramente. Quis semelhar-se com um mágico.

- Tcham! Tcham! Tcham! Tcham! Gostaram?

O filho de três anos, espremeu os olhinhos e questionou:

- Por que o senhor comprou uma galinha, pai?

- Não é uma galinha, filho - disse a mãe com ternura - é um louro.

- Mas ele é verde, mãe... Louro não é amarelo? Indagou a filha.

- É um papagaio - definiu o pai - Pretendo ganhar muito dinheiro com ele. Vou ensiná-lo a falar, a cantar o Hino Nacional... Todos os programas de televisão vão querer entrevistá-lo... Aí eu peço uma grana preta... Vamos ficar ricos! Agora preciso escolher um lugar para ele ficar...

- Que tal ali? Sugeriu a esposa.

Suspenderam a gaiola do bípede emplumado sob o telhado da área de serviço. Naquele mesmo dia, o marido repetiu algumas palavras para a ave, que permaneceu alheia aos ensinamentos.

Meses se passaram e, mesmo com a insistência daquela doutrina, o animal não evoluía. Raramente ouvia-se um curupaco.

- Talvez eu não seja um bom professor! Confidenciou certa vez a um amigo.

- Não é nada disso... já li uma reportagem sobre adestramento de animais... Pra ensinar um bichinho, é necessário que ele receba muito carinho e compreensão.

Naquele dia, o marido voltou decidido a acariciar o papagaio. Certamente o seu amigo estava com a razão. Quem não gosta de um carinho?

- Loro! Curupaco! Começou a falar, abrindo a portinha da gaiola para fazer um cafuné no cocuruto do papagaio. Diga: CO-MI-DA! CO-MI-DA!

O papagaio olhou desconfiado e abriu o bico. "Ele vai falar", pensou. Quando a mão aproximava-se da ave, esta mordeu-lhe o indicador, que só foi liberado depois de um palavrão gritado.

No outro dia, com o dedo enfaixado, encontrou-se novamente com o amigo.

- E aí? Conseguiu fazer o bicho falar?

- Que nada! - Respondeu constrangido - Além de não dizer nenhuma palavra, ainda me fere o dedo.

- Você já reparou que os animais quando obedecem ao dono, recebem alimento? Por que você não faz o mesmo?

- Mas ele não me obedece.

- Então não lhe dê comida até que ele faça o que você quer.

Resoluto, confiou mais uma vez no amigo.

- Loro! Curupaco! Ou você fala alguma coisa ou não lhe dou comida. Entendeu?

O papagaio continuou indiferente diante da ameaça. Entretanto, a partir daquele dia ficou terminantemente proibido a alimentação do animal.

- Quem se atrever a dar comida pro papagaio, vai se ver comigo. ENTENDERAM?

Ninguém se atreveria a contrariar a determinação daquele homem severo, capitão reformado do exército.

Naquela semana o papagaio não foi alimentado.

Certo dia, a mulher varrendo o chão, ouviu uma voz esganiçada e debilitada:

- Co... mi... da!

Olhou para todos os lados mas não havia ninguém. Seus filhos estavam na escola.

- Co... mi... da!

Surpreendeu-se quando percebeu que o papagaio finalmente falava. Jogou a vassoura e correu ao telefone.

- Querido! O papagaio tá falando! Venha depressa!

Estupefata, tanto quanto como quando ouvira a primeira palavra pronunciada por um filho seu, retornou para próximo da gaiola.

- Co... mi... da... Co... mi... da...

O marido entrou correndo e ainda conseguiu ouvir a ave dizer:

- Co... mi... da...

- Traga as sementes de girassol, mulher... Traga o girassol – berrou.

A mulher obedeceu. Porém, quando entregou o pacotinho ainda lacrado ao marido, ouviu o papagaio repetir a palavra e tombar na gaiola.

Era muito tarde. O papagaio havia morrido de fome e destruído o sonho do marido em se tornar milionário.

terça-feira, 21 de julho de 2009

OLHOS DO CORAÇÃO

Todos os dias, nas manhãs, eu via
velha mansarda e, cândida à janela,
uma menina, olhos azuis, tão bela
que, até com minha sisudez, sorria.

Eu meditava: “Que mistério havia
naquele olhar daquela alma singela?
Pois quanto mais eu me afastava dela
meu pensamento mais a ela servia.

Atormentado, resolvi indagar:
“Diga, menina... o que há para se olhar?
O que te apraz no mundo assaz cruento?”

“Não sei, senhor... Não posso ver... sou cega;
mas sinto o amor de Deus que a mim se entrega
no sol... na chuva... nos beijos do vento...”.
ASFIXIA

Asfixia-me
a impunidade ininterrupta
aos predadores da Amazônia:
cancros da biodiversidade,
com insônia

Asfixia-me
a degradação da fauna e flora...
Espécie extinta
ex-tinta
na tela acinzentando da Amazônia.

Asfixia-me
a invasão alienígena
que vocabulariza
e escraviza
a alma indígena.

Asfixia-me
a hipocrisia condenatória
à incúria brasílica.
Arrombem o passado,
autores de seus desertos!

Asfixia-me
o planger do uirapuru
antecipando a última sinfonia...
Rio Amazonas
agonia.

Asfixia-me...
Asfixia...
Asfixi...
Asfi...
As...
SONOLÊNCIA

Por um momento
a solidão
se deteriora
pela troca de soslaios.

Aos poucos
os olhares se confessam
as mãos se encontram
e os lábios se entregam
como loucos.

Os corpos
sequiosos e urgentes
aderentes
abandonam o invólucro
do pudor.

No leito
- catre virginal –
entre o cetim e a renda
os corpos úmidos
intumescidos
se preparam para a oferenda...

...no instante em que o sol
- delator –
acorda, no criado-mudo
o meu despertador...
desperta
a
dor.
ÚLTIMO SUSPIRO

Gastei o tempo
com pressurosidades
não percebi os laivos
que a felicidade
teimava em me mostrar.

O pétreo coração
tornou obsoleto
o irromper da flor
e a lágrima
de amor.

Amealhei!
Putrefiz-me com o dinheiro!
Julguei-me proprietário
de todos
do todo
de tudo!

Mas o tempo
rasgou-me a prepotência
e com austeridade
ensinou-me que o dinheiro
não compra a eternidade.

Hoje
a corrosão
que a enfermidade me provoca
enfoca
a minha estupidez.

Tardiamente
espio o céu pela janela
e compreendo:
a vida é bela
para quem a vive intensamente.