segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

LAMBE-LAMBE



LAMBE-LAMBE


Meu avô se sentia importante
às vésperas das festas natalinas
no terno de missa, pouco usado:
linho xadrez em tons naftalina.

As mãos apoiadas na bengala,
o queixo ligeiramente altivo,
o chapéu furtando-lhe a calvície,
o olhar cor do céu desmilinguido.

Minha avó, ao lado, emurchecida,
refém do silêncio amedrontado,
pedia através de ave-marias
o fim da vida, a extinção do fardo.

Os onze filhos de pés descalços,
olhos no chão quais bichos do mato,
não ensaiavam insurreições
porque elas eram mortais pecados.

Na praça em frente à remota igreja
de Aparecida, ao sol escaldante,
o meu avô escolhia a pose
para o registro do lambe-lambe.

Acreditava que a imagem augusta
o inseriria entre os imortais...
Mas o retrato da eternidade
alguém rasgou, não existe mais.


Maurício Cavalheiro