quarta-feira, 5 de agosto de 2009

DESTINO?


Dia dois de dezembro.
Depois de décadas de dedicação, Deocleto despedia dona Dalva: descuidada derrubara desinfetante dentro do dormitório, degenerando diversos documentos. Desesperada, desculpava-se desejando demovê-lo da decisão. Determinado, Deocleto disse-lhe:
- Depois desse descuido desmedido, danificando-me dois dossiês, dificulta-me desfazer dessa decisão... Destarte, desapareça definitivamente desse domicílio..
Descrevendo dúzias de dívidas, duvidosamente dona Dalva desmaiou. Desconfiado, Deocleto deixou-a desfalecida. Dentro da drogaria “Droga D” divisou Dráuzio devolvendo dez drágeas , deterioradas, desvanecedoras de dentalgia. Debochou:
- Dor de dentadura, Dráuzio?
Desconcertado, Dráuzio disparou:
- Deixe de denegrir-me, deputado... Deveria dizer-lhe dezenas de desaforos... deveria...
- Desculpe-me .
- Desforrarei!
- Desculpe-me, Dráuzio. Deveria dirimir-me desses desplantes depois de deperecer diante duma dor dilacerante.
- Dor dilacerante?
- Deixe-me desabafar. Desejo demais dona Dalva... Deveria dizer-lhe desse desenfreado desejo de desposá-la... Deveria... Desencorajo-me... Doeria demais decepcionar-me.
- Deixe de delirar.
- Deito, durmo, desperto desejando-a demais...Despedi-a: devo descansar desse desespero.
- Dona Dalva deixou-lhe desmiolado, desassisado... Depois dialogamos.
Decorridos dezessete dias, Deocleto divisou dona Dalva dentro da doçaria deglutindo docinhos de damasco. Decidiu desculpar-se.
- ...Dona Dalva – disse desconcertado.
- Doutor Deocleto!... deveria distanciar-se dos doces... diabete descontrolada destrói.
- Detesto doces.
- ...
- ...Dona Dalva... deixe-me dizer-lhe do desejo defeso...
- Deocleto!!! Disse Dráuzio dissuadindo-o.
- Dráuzio!?
- Deixou-me dois docinhos, Dalvinha?
- Dalvinha!?
- Desposamo-nos, Deocleto... Desposamo-nos.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O PÓ BRANCO


Após mais um dia de trabalho, Ataulfo dirigiu-se com alguns amigos para uma choperia, pretendendo abster-se dos problemas do escritório e do mundo. Entretanto, como nos diálogos predominavam os atentados terroristas, decidiu retornar para o aconchego do lar.
Instalou-se no automóvel e pouco mais de um quarto de hora, estacionava em frente ao número 36, da Alameda dos Querubins.
Superou o portão e, depois de alguns passos, penetrou a chave na fechadura e adentrou.
- Nicinha!!! Ô Nicinha!!!
Desatou a gravata, jogando-a na poltrona.
- Nicinha, cheguei!!!
Lançou o paletó sobre a cama. Retirou quase toda a roupa. Ficou apenas de cueca.
- Nicinha!!! Cadê você, Nicinha!!!
"Ô mulherzinha pra bater perna. Nunca está quando eu preciso" pensava, caminhando para a cozinha.
Abriu a geladeira e retirou uma cerveja. Preparou uma porção de presunto e sentou-se à mesa, onde estava depositado o jornal do dia, que estampava cenas da guerra contra o terrorismo de Osama Bin Laden.
"A resistência do líder Talibã, e a intransigência norte americana, estão dizimando inocentes".
Por mais que Ataulfo quisesse ficar alheio aos acontecimentos, não podia. Com o jornal nas mãos, procurou ler todos os artigos que tratavam daquele episódio. Deteve-se diante de um artigo:

"Antraz - a resposta Talibã"
Dezenas de pessoas já foram contaminadas
por um pó branco que, geralmente, chega
ao destino por via postal. O simples contato
tem provocado o Antraz, doença que pode
causar a morte.

Ataulfo, com repugnância, lançou o jornal ao chão, sorveu o restante da cerveja e levantou-se para pegar outra. Nesse momento, ao olhar novamente para a mesa, avista um envelope.
- De quem será essa carta? Resmungou. Será de outro credor?
Volveu-se para pegá-la. Quando a abriu, estremeceu: não havia nenhuma correspondência dentro do envelope; mas, sim, um PÓ BRANCO! Começou a tremer e, a sua reação fez com que o conteúdo do envelope caísse sobre sua mão.
- VOU MORRER!!! Gritou desesperado. VOU MORRER!!!
Ataulfo ruiu ao chão. Começou a tossir e a sentir uma forte dor no peito.
- SÃO OS SINTOMAS!!! VOU MORRER!!! Gritava tanto, que toda a vizinhança poderia ouvi-lo. Talvez fosse esse o seu desejo: que alguém viesse para socorrê-lo.
Cada minuto parecia ser um século. Respirava com dificuldade. Começava a sentir o hálito da morte.
- VOU MORRER!!! NICINHAAAAAAAA!!!
Nicinha entra alvoroçada e desfaz-se rapidamente de alguns embrulhos. Socorre o marido.
- O que foi, Ataulfo??? O que você está sentindo, pelo amor de Deus???
- Vou morrer, benhê... Fui contaminado pelo antraz... Malditos terroristas!!!
Nicinha também começa a gritar em prantos.
- Eu não quero ficar viúva!!!
- Você vai encontrar alguém melhor que eu...
- Não quero ninguém!!! Eu só quero você, meu amor!!!
- Cuide bem dos nossos filhos...
- ...
- Nicinha... balbuciou - Preciso fazer uma confissão pra você... antes que seja tarde demais...
- Agora não é hora... deixa pra depois...
- Mas, eu vou morrer!!!...
- ...
- Nicinha... Esforçou-se, olhou dentro dos olhos da esposa e revelou: eu traí você... e várias vezes... com a Julinha... com a Nanda... com a Raimunda... como se chama aquela mesmo que trabalha na loja do Orlando?
Se ele não estivesse nos braços da morte, ela, certamente, o expulsaria de casa depois de decepar-lhe o falo. Aquele infortúnio exigia que ela o absolvesse.
- Qual o homem que nunca traiu sua mulher? Isso é apenas um detalhe, insignificante nesse momento.
Ataulfo ameaçava fechar os olhos, como se ouvisse o chamado da morte.
- Onde você se contaminou, meu amor?
Com dificuldade, ele apontou para a mesa. Nicinha olhou e não viu nada.
- Não tem nada na mesa, querido... Apenas essa garrafa vazia de cerveja... esse resto de porção de presunto... Huuuuum! Que delícia!!!
- CUIDADO!!! Alertou ao ver a mulher com o envelope na mão.
- Cuidado??? Mas, isso é apenas um envelope... Foi a Dona Nenê que me deu... Estou preparando um bolo para o nosso aniversário de casamento... Acabou o fermento e ela me cedeu um pouco nesse envelopinho... - Revelou acomodando a cabeça do marido entre suas pernas.
Ataulfo, envergonhado, sorriu. Desconcertado, levantou-se e disse:
- Pensei que fosse o tal antraz... Ainda bem que não corro risco de morte... Graças a Deus estou vivo... e bem vivo!
A mulher, pasmada, dirigiu-se à área de serviço e retornou com uma vassoura na mão.
- Seu cachorro!!! Se não morreu pelo antraz, vai morrer de tanta vassourada... Mulherengo! Traidor! Vagabundo!
- Ai! Ui! Para com isso, benhê... Ai! Ui!

domingo, 2 de agosto de 2009

MISSA DE DOMINGO



O domingo finalmente chegara para desfazer a curiosidade daquela cidadezinha de três mil habitantes, escondida no interior paulista. Naquele dia, a única igreja da cidade foi incapaz de acomodar a população, que queria conhecer o novo pároco.
Dona Maria, da quitanda, mandara confeccionar um vestido amarelo com flores vermelhas, especialmente para a ocasião. Atanagildo recuperara o terno sexagenário que usara em seu casamento com a finada Landinha. Dona Estelinha, obesa e falastrona, proprietária de uma doçaria, enfiada num modelito que encomendara da capital, preocupava-se com o cumprimento do vestido, que ameaçava-lhe expor as coxas. Vez ou outra agarrava a extremidade do traje, puxando-o para baixo. Tavinho procurava esconder-se atrás do folheto litúrgico, para não presenciar a cena. Porém, incontrolável, arriscava uma olhadela e caía na gargalhada.
Os fiéis começaram a consultar o relógio, desconfiados sobre a vinda do novo padre. A missa seria realizada às 9:00hs; e os relógios precisavam 9:15hs.
Nesse momento, um automóvel coberto pela poeira da estrada, estaciona em frente à igreja. Nele o padre e um maltrapilho que, descendo, revelou que a causa do atraso fora um pneu furado e um estepe quase vazio.
- Obrigado, padre - agradeceu o indigente entrando na igreja.
O padre sorriu, ajeitou a batina surrada, retirou uma Bíblia do veículo e ascendeu aos degraus logo atrás do seu companheiro de viagem.
O povo, resistente pela curiosidade, acompanhou, com os olhos, a caminhada do padre até o altar.
- Ele é bem novinho, né, Estelinha!?
- E bonitão também, Maria.
- Ai, ai, ai... olha o sacrilégio!
O maltrapilho, pés no chão, barba branca desleixada, abordava cada fiel, estendendo a mão e oferecendo um sorriso. "Não tenho trocado" dizia uns, enquanto outros simplesmente o ignoravam. Chegou a ouvir alguém sugerir que o retirassem dali, pois a igreja era um lugar sagrado, não uma casa de vagabundos. Determinado, continuou a peregrinação. Alguns até deram-lhe umas moedas.
No altar, o padre sem dizer nenhuma palavra, organizava a mesa, abrindo a Bíblia no Evangelho de São Mateus. "Que padre chato!" resmungou alguém. "Nem bom dia ele disse!" reclamou outro. "Vai ver que ele pensa que tem o rei na barriga!" ranzinzou um sexagenário.
O maltrapilho aproximou-se do altar, retirou o microfone do pedestal. Algumas pessoas foram para retirá-lo e expulsá-lo da igreja. Entretanto, com um pequeno gesto da mão, o padre as impediu.
- Irmãos e irmãs... Não subjulguem ninguém pela aparência... Quem vê a mim, sente repugnância em razão da minha indumentária, da minha aparência... Ofereci à muitos a minha mão... não para esmolar, mas para uma saudação. A grande maioria torceu o nariz. Uns pensaram até em me retirar daqui. Outros, deram-me algumas moedas... Não preciso de dinheiro!
O povo estava aparvalhado. Quem seria aquele maltrapilho que se atrevia a ocupar o microfone do padre para repreendê-lo?
- Não fiquem com essa cara... Acho que já está na hora de me apresentar: sou o padre Francisquinho. A partir de hoje serei o pároco dessa igreja.
Enquanto as pessoas cochichavam, o padre prosseguia:
- Esse que está trajado de padre, é o meu sacristão. Nasceu com um pequeno defeito: jamais pronunciou uma palavra. Por isso todos o chamam de Mudinho.
- Não queremos nenhum padre que nos faça de idiotas!
Padre Francisquinho interrompeu o seu colóquio para procurar por quem havia proferido aquela frase. Se o rechonchudo Adamastor não procurasse, desesperadamente, se esconder atrás de dona Estelinha, talvez o padre não saberia, até hoje, que fora ele o autor da exclamação.
Placidamente o padre caminhou até o último banco.
- O senhor se considera um idiota?
Adamastor olhou de soslaio. Dissimulado, corrigiu os olhos para o folheto litúrgico.
O padre permanecia aguardando a resposta. Dona Estelinha, empurrando-o com o cotovelo, cochichou "O padre tá falando com você". Adamastor que suava até pelas orelhas não teve alternativa. Reuniu coragem e justificou-se:
- Um padre não deve mentir... e o senhor mentiu sobre a sua identidade fazendo-nos parecer idiotas.
Sereno, o sacerdote fitou por alguns segundos a cruz no altar e depois falou:
- Chama-me de hipócrita... O que fiz foi para avaliar a cristandade de vocês; assim como se avalia um aluno para definir a diretriz a ser empregada em seu ensinamento... Isso não é hipocrisia... Hipocrisia é estar aqui, na casa do Pai, e repudiar a saudação de um maltrapilho... A veste não é sinal de superioridade. Todos nós nascemos nus! Portanto, iguais. Ninguém é melhor do que ninguém em razão da roupa. Muito pelo contrário. Existem muitas pessoas que se vestem de ouro e, por dentro, estão como o sepulcro: podres.
Adamastor ruiu no banco, enquanto o padre retornou para o altar e celebrou a missa.