segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

LAMBE-LAMBE



LAMBE-LAMBE


Meu avô se sentia importante
às vésperas das festas natalinas
no terno de missa, pouco usado:
linho xadrez em tons naftalina.

As mãos apoiadas na bengala,
o queixo ligeiramente altivo,
o chapéu furtando-lhe a calvície,
o olhar cor do céu desmilinguido.

Minha avó, ao lado, emurchecida,
refém do silêncio amedrontado,
pedia através de ave-marias
o fim da vida, a extinção do fardo.

Os onze filhos de pés descalços,
olhos no chão quais bichos do mato,
não ensaiavam insurreições
porque elas eram mortais pecados.

Na praça em frente à remota igreja
de Aparecida, ao sol escaldante,
o meu avô escolhia a pose
para o registro do lambe-lambe.

Acreditava que a imagem augusta
o inseriria entre os imortais...
Mas o retrato da eternidade
alguém rasgou, não existe mais.


Maurício Cavalheiro

domingo, 12 de junho de 2016

CREDIÁRIO

Dia 12 de junho. Dia dos namorados.
Sempre achei difícil comprar o presente que superasse ou satisfizesse a expectativa de minhas namoradas.  Nunca fui bom nisso, é verdade. Mas me esforçava: gastava o que podia e o que não podia na vã esperança de, pelo menos, receber um elogio.
Talvez eu tenha escolhido namoradas insensíveis, materialistas, insaciáveis, que sempre queriam mais e mais e mais. Ou, talvez, eu não soubesse mesmo fazer as escolhas certas dos presentes: ramalhetes de flores, bombons, poesias, peças de vestuário, viagens, jantares... Fato é que todos os meus presentes foram recebidos com indisfarçada insatisfação, mas nenhum foi devolvido.
Pensando bem, quem deveria demonstrar insatisfação era eu. Nunca ganhei sequer uma bala. Também nunca me importei com isso. Acredito que o amor não se materializa em presentes, em bobagens efêmeras. O amor é muito mais valioso do que qualquer patrimônio. Se fosse materialista, escolheria namoradas pelo poder aquisitivo delas. Não sou, graças a Deus! Minhas escolhas eram – e ainda são – feitas sob a regência de meu coração.
Hoje fui ao shopping. Cheguei agorinha e resolvi escrever esta crônica. Havia muitas pessoas lá. Observei vários casais entrando e saindo das lojas, comprando mundos e fundos. Dia dos namorados é assim. 
Perambulei sem destino parando diante das vitrines com ofertas irresistíveis de produtos de qualidade. Mas pra que comprar? Mas pra quem comprar? Estou solteiro e não preciso cometer extravagâncias.
Por volta das 12 horas, senti fome.  Foi difícil encontrar um lugar na praça de alimentação. Depois de longa espera, desocuparam a mesa espremida na pilastra. Sentei-me e pedi algo para comer. Enquanto esperava, vi que na mesa ao lado estava uma linda morena de olhos azuis. Era minha ex-namorada, trocando carinhos com um homem muito feio, de caráter duvidoso, mas empresário bem sucedido na cidade. Lembrei-me das últimas palavras que ela me disse ao encerrar o nosso namoro: “A fila anda”. E andou, para ela.  
Assim que me viu, exagerou nos carinhos, beijando o pescoço e as orelhas daquele homem; talvez pensasse que me provocaria ciúmes. Nem um pouco. Mas confesso que fiquei com muita raiva quando ela começou a exibir o anel de brilhantes. Perdi a fome. Levantei-me e cancelei o pedido.
Aquela exibição provocadora me alertou que a verdadeira razão de eu ter ido ao shopping era pagar uma conta. Paguei a antepenúltima parcela e prometi a mim mesmo que nunca mais compraria presentes à prestação. Nem mesmo um anel. Nem mesmo um anel de... brilhantes.


Maurício Cavalheiro
 

quinta-feira, 2 de junho de 2016

TOLICES DO AMOR

A primeira vez que a vi foi na feira livre. Escolhíamos maçãs quando nossas mãos elegeram o mesmo fruto e, inevitavelmente, se tocaram. Por uma fração de segundos me fitou, enrubesceu. Apressou-se em completar a dúzia sem cuidar da escolha. Pagou e deixou a barraca. Fiquei extasiado com a beleza daquela mulher que parecia ter uns trinta anos, não mais. Meus olhos seguiram aquele corpo gracioso num vestido ingênuo, leve, quase transparente, que mal cobria os joelhos. Desisti das maçãs.
Segui-a até o ponto de ônibus, só a olhando de soslaio, para que não desconfiasse da minha espreita. Era o ponto do Piracuama, bairro encravado na Serra da Mantiqueira.
Assim que o cobrador autorizou, esperei que ela entrasse no ônibus para fazer o mesmo. Passei por ela e fiquei em pé, no fundo do coletivo, de onde podia vê-la sem despertar suspeitas. Depois de algumas dezenas de minutos, ela desceu. Eu também. Esperei que estivesse a uma distância segura para seguir atrás. Não queria aborrecê-la.
O sol me castigava naquela estrada íngreme e pedregosa. Minhas pernas doíam. O sedentarismo me fez perdê-la de vista, porém, não desisti. Prossegui, morosamente, até avistar um casebre, onde resolvi pedir um copo d’água. Bati à porta e, para minha surpresa, foi ela quem abriu. Mas fechou a porta sem dizer um “a”. Pouco depois, a porta foi reaberta por um senhor que, pelo aspecto, deveria ser nonagenário, não menos. Substitui a água pela ousadia:
- O senhor me autoriza a namorar a sua filha?
Ele franziu o cenho, arregalou os olhos e respondeu:
- Não...
Não o deixei prosseguir. Precisava ganhar o apreço dele.
- As paredes de sua casa não têm reboco. Se quiser, posso providenciar. Será um presente.
Os olhos do velho brilharam. No outro dia, contratei pedreiros para a empreitada. Após o término da obra voltei àquela casa. Ele me atendeu, à porta, com cigarro de palha na boca, lustrando uma espingarda.
- O senhor me autoriza a namorar a sua filha?
- Não...
- Seu telhado está precisando ser trocado. Posso resolver isso também.
Resgatei até o último centavo da poupança e, no outro dia, caibros, vigas e telhas foram levados para a reforma do telhado. Aproveitei para providenciar a pintura da casa também. Ficou linda!
- O senhor me autoriza a namorar a sua filha?
Ele apontou a espingarda para a minha cabeça e ameaçou:
- Suma daqui, senão estóro seus miolo. Otra coisa, seu disgramado, ela num é minha fia, ela é minha muié!



 Maurício Cavalheiro 

segunda-feira, 11 de abril de 2016

MULHERES DE VESTIDO


Mulheres são mais lindas de vestido
curto ou comprido
pois quando passam
passeiam charme pelo meu olhar

Sou fã das que preferem o tecido
ingênuo e leve
que deixa o vento
singrar as curvas para eu sonhar

Mas entre todos, o meu preferido
é o branco-amor
que há de vesti-la
quando comigo for se casar

Maurício Cavalheiro – 31/03/2016
NÃO DEMORES

Cansei de amores nômades e suas tendas
deixam rasuras na pele
e cheiro de revolta nos lençóis

Nas primeiras noites de abandono
o silêncio ensurdece o coração
e enlouquece a alma

Depois nasce o vazio que cresce e não dorme
elaborando erosões
levantando muros contra outras abordagens

Mas são ações tão robustas
quanto castelos de areia
sempre haverá o risco em uma nova chegada

Um dia tu virás também cansada de amores rescindíveis
e se fores verdadeira em tua entrega
não te arrependerás

- posso rasgar a tua roupa
jamais o teu coração

Maurício Cavalheiro – 03/04/2016
VALE DOS GIRASSÓIS

No vale dos girassóis
os sonhos não têm fraturas,
a infância não envelhece,
olhos não criam ciladas.

Cata-ventos de Van Gogh,
no vale dos girassóis,
ouvindo a lira de Deus
bailam com vestes de luz.

Quero que venhas comigo
com tua saia de rendas.
No vale dos girassóis
terás meu corpo e minha alma.

E quando a noite chegar
o amor dirá às estrelas
que somos dois giraluas
no vale dos girassóis.


Maurício Cavalheiro – 07/04/2016

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

VERDADEIRO AMOR


Quão tolo é o tempo
que te deu estrias
tentando aborrecer
minha visão.

Quão tolo é o tempo
que, por celulites,
pensou que eu não
te quereria mais.

Quão tolo é o tempo
que quis nos segregar
ao sentenciar teu corpo à
flacidez

Quão tolo é o tempo
que te impôs mil rugas
tentando eliminar o meu
tesão.

Quão tolo é o tempo...

Quão tolo é o tempo
em suas falcatruas
que desconhece o verdadeiro
Amor.



Maurício Cavalheiro – 16/01/2015